Há poucos meses, um distinto e brioso professor aposentado da UFMG comentava, numa roda de conversa da qual tive a sorte de participar, o quanto se ressentia, nos dias atuais, da ausência dos “grandes homens” — isto é, das figuras intelectuais e (por que não?) majestosas que o inspiraram no cada vez mais distante século XX.
Isso me fez pensar no seguinte: talvez seja hora de itirmos, sem o verniz do otimismo tolo, que atravessamos uma era de colapso da crítica fundamentada. Mais que uma crise conjuntural, trata-se de uma erosão prolongada, cujas raízes fincam-se nas estruturas do tempo presente. Vivemos sob a tirania do imediato, da resposta ligeira, do gesto impulsivo — e pensar criticamente, por definição, é travessia demorada. O cansaço das ideias parece ter se tornado uma marca do nosso tempo.
Num primeiro ponto, é inevitável associar esse declínio ao rebaixamento do debate público nas redes sociais. Ambientes presenciais antes ocupados pela disputa saudável de ideias se converteram em maciças arenas virtuais de polarização estéril, onde o algoritmo premia a indignação rasa e desincentiva a complexidade. O senso comum prosperou sobre o juízo elaborado; a provocação vale mais que a proposta. A crítica, em seu sentido mais nobre, tornou-se suspeita, muitas vezes confundida com amargura ou ressentimento.
A inteligência artificial, embora revolucionária em suas possibilidades técnicas, aprofunda essa tendência à homogeneização do discurso. A lógica preditiva, que orienta boa parte desses sistemas, frequentemente reproduz e perpetua fórmulas já gastas, sufocando a originalidade em favor daquilo que é estatisticamente mais provável. Em vez de estimular a ruptura, muitas vezes encoraja a repetição. A crítica, nesse contexto, corre o risco de ser reduzida a simulação.
Soma-se a isso a lenta e sistemática asfixia das universidades públicas, historicamente os principais polos de produção do pensamento crítico no país. Segundo levantamento do Observatório do Conhecimento, entre 2014 e 2023 o orçamento das universidades federais sofreu uma retração de quase 56%, em valores corrigidos pela inflação. O desmonte não é apenas financeiro: é simbólico e institucional. Ele compromete a permanência estudantil, desmobiliza pesquisadores e mina o ambiente de criação intelectual.
Também não é casual que tão poucas ideias realmente novas consigam romper a superfície do discurso dominante. O mainstream cultural brasileiro — em grande medida domesticado por lógicas de mercado, editais previsíveis e curadorias embandeiradas — se mostra impermeável a vozes dissonantes, a proposições radicais, a experimentações que confrontem os paradigmas vigentes. O novo, quando não é domesticado, é simplesmente silenciado. E o clássico — quando revisitado sob nova perspectiva —, sumariamente refutado.
Esse marasmo crítico repercute diretamente nas formas de produção do conhecimento. Teses se acumulam sem ressonância social ou — de tão teóricas — desconectadas do objeto; pesquisas permanecem truncadas e/ou incompletas; projetos promissores são interrompidos por falta de interlocução ou incentivo. Em um meio intoxicado pela estagnação, a crítica perde fôlego — e a elaboração intelectual se retrai, por falta de quem a provoque e de quem a escute.
Não menos grave é o desconhecimento generalizado de nossas histórias que se desenrolam fora dos eixos centrais do poder político e econômico. O Brasil real — múltiplo, periférico, profundo — permanece à margem das narrativas canônicas. Há uma cegueira cultivada, quase sempre conveniente, diante das memórias que escapam ao roteiro oficial. Sem esse mergulho nos subterrâneos da história, não há reflexão que se sustente.
E onde estão os jovens? O que pensam sobre o país que herdarão — ou do qual já são coadjuvantes invisibilizados? Há uma ausência eloquente das novas gerações nos debates sobre memória, patrimônio e identidade. Essa ausência não decorre de desinteresse puro e simples, mas de uma desconexão forjada por uma escola empobrecida, uma sociedade que raramente escuta e um Estado que persiste em subestimar o valor simbólico do pertencimento.
Essa erosão do pensamento crítico já contaminou nossas instituições, muitas vezes sem alarde. O que vemos hoje são estruturas apáticas, funcionais, tecnicamente operacionais, mas vazias de horizonte. A lógica burocrática substituiu a política com “P” maiúsculo; os projetos foram substituídos por metas (algumas delas, pessoais); a imaginação, por indicadores e belas apresentações de PowerPoint. A inteligência institucional está em crise — e poucos se deram conta.
E é inevitável a comparação: os gestores de hoje parecem, sim, menos brilhantes, menos intelectuais, menos profundamente comprometidos com as ideias do que aqueles que os antecederam. A tecnocracia triunfou, mas à custa da imaginação. Dirigentes que antes vinham do núcleo intelectual de suas carreiras, ditando caminhos e inspirando as gerações posteriores, agora são substituídos por operadores políticos e aliados eleitorais, com pouco ou nenhum afeto às instituições que comandam — muitas delas com vasta contribuição para nosso avanço civilizatório e agora estagnadas ou irrelevantes.
O resultado disso tudo é um país sem norte, desmemoriado e incapaz de projetar um futuro. A ausência de capacidade analítica, somada ao colapso do debate público e ao desmonte institucional, gera um vácuo intelectual. A cultura do improviso e do imediatismo tornou-se hegemônica. E o mais grave: parece haver um desalento tácito com essa decadência.
A única saída possível começa pela construção de um novo pacto. O Brasil precisa, com urgência, repactuar um projeto de desenvolvimento. E esse projeto precisa ser ancorado em uma política robusta de memória, cultura e patrimônio. Uma política que não trate o ado como peso, mas como raiz. Que se reconecte com os territórios, os saberes e os afetos das populações. Só assim será possível reencantar o país — e devolver à crítica seu lugar de origem, destino e protagonismo.