Uma cidade que preserva seletivamente sua memória perpetua desigualdades profundas. Neste artigo, analiso dados recentes que escancaram o apagamento histórico dos subúrbios cariocas — territórios ricos em cultura, mas pobres em reconhecimento oficial.
Fui surpreendido — assustado e preocupado — ao tomar conhecimento de alguns dados apresentados na excelente palestra “Desigualdades das políticas de memória: um recorte para pensar os subúrbios cariocas”, ministrada por Gabriel da Silva Vidal Cid (PPCIS/UERJ/FAPERJ/UFRRJ) e Leopoldo Guilherme Pio (FCS/UNIRIO), durante o sensacional I Seminário Rio de Janeiro Suburbano: olhares sobre a cidade, realizado nos dias 5 e 6 de junho de 2025, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Na exposição, os autores apresentaram uma série de gráficos e tabelas que escancaram o que muitos já percebem há tempos, mas que nem sempre conseguem expressar com números: há uma desigualdade brutal na política de preservação da memória histórica da cidade do Rio de Janeiro. Mais do que desigual: seletiva. E, como não poderia deixar de ser, profundamente excludente.
Os dados revelam que o subúrbio carioca está praticamente ausente do mapa oficial da memória.
Memória para quem? O que os dados revelam
Segundo dados organizados pelos autores a partir do inventário de Vera Dias (Os monumentos do Rio de Janeiro: Inventário. 2015) e do portal Data.Rio (https://www.data.rio/datasets/PCRJ::bens-tombados/explore), os números de monumentos e bens tombados nas diversas Áreas de Planejamento (APs) do município são os que estão no sítio abaixo:
https://drive.google.com/file/d/1YMz4bV-sJvyTjkdsovJnPkpAUi-Z5qy0/view?usp=drivesdk
Conheça a Divisão Oficial da Cidade do Rio de Janeiro por Áreas de Planejamento
Para facilitar a leitura e a compreensão das tabelas apresentadas acima, veja a seguir o sítio onde temos o documento da Prefeitura do Rio de Janeiro, que traz a relação dos bairros do município com a respectiva indicação da Área de Planejamento (AP) a que pertencem. O material também inclui um mapa ilustrando visualmente a divisão e a subdivisão do território da cidade em suas cinco Áreas de Planejamento. Trata-se de uma referência útil e importante, especialmente para quem não está familiarizado com essa organização territorial adotada pela istração municipal.
Sítio:
http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/5148142/4145881/ListadeBairroseAPs_Mapa
O Apagamento Patrimonial dos Subúrbios Cariocas: Monumentos e Bens Tombados Concentram-se no Centro e na Zona Sul
A análise dos dados consolidados revela uma profunda desigualdade na distribuição dos monumentos e bens tombados no Município do Rio de Janeiro. Embora o município esteja dividido oficialmente em cinco Áreas de Planejamento (APs), observa-se que os reconhecimentos históricos e patrimoniais concentram-se de forma desproporcional em determinadas regiões, em detrimento de outras.
A AP2, correspondente majoritariamente à Zona Sul, lidera com folga tanto no número absoluto quanto na proporção de bens tombados e monumentos. Ela concentra 465 monumentos, o que equivale a 41,97% do total do município, e 1.409 bens tombados, representando expressivos 59% do total. Em segundo lugar vem a AP1, correspondente ao Centro da cidade, com 373 monumentos (33,66%) e 688 bens tombados (28,81%). Juntas, essas duas áreas — Centro e Zona Sul — acumulam mais de 75% dos monumentos e quase 88% dos bens tombados de todo o município.
As demais áreas — AP3 (Zona Norte), AP4 (Barra e Jacarepaguá) e AP5 (Zona Oeste) — aparecem com números muito inferiores. A AP3 conta com apenas 102 monumentos (9,21%) e 118 bens tombados (4,94%); a AP4 tem 39 monumentos (3,52%) e 60 bens tombados (2,51%); e a AP5 registra 95 monumentos (8,57%) e 72 bens tombados (3,02%). Esses números deixam claro que as regiões mais populosas e extensas da cidade — justamente aquelas tradicionalmente menos favorecidas pelas políticas públicas — também são as mais negligenciadas no que diz respeito à preservação e ao reconhecimento da memória urbana e cultural.
Quando agrupamos esses dados por região, a desigualdade permanece evidente. A Zona Sul, sozinha, mantém 41,97% dos monumentos e 59% dos bens tombados. O Centro segue com 33,66% dos monumentos e 28,81% dos bens tombados. Já os subúrbios — representados pela união das APs 3 e 5, que abrangem a Zona Norte e a Zona Oeste — possuem, juntos, apenas 17,78% dos monumentos e 7,96% dos bens tombados de toda a cidade.
Essa distribuição comprova um apagamento histórico dos subúrbios cariocas, que, apesar de sua riqueza cultural, afetiva e identitária, seguem sendo invisibilizados pelas políticas de patrimônio e memória institucional do município. Trata-se de uma exclusão que não é apenas simbólica, mas profundamente territorial e social.
Quando o esquecimento é política
Enquanto a Zona Sul concentra 59% dos bens tombados e o Centro 28,81%, o subúrbio inteiro — que abrange as vastas zonas Norte e Oeste — aparece com apenas 7,96%. Isso significa que, na prática, os bairros mais populares da cidade não têm sua história reconhecida, protegida, nem transmitida oficialmente.
Mais uma vez, fica evidente que a memória oficial da cidade é marcada pela desigualdade. O tombamento e a preservação patrimonial — instrumentos fundamentais para a valorização da identidade e da cultura de um povo — são usados de forma altamente seletiva, quase sempre voltados para os mesmos lugares de sempre: os territórios ricos, centrais, brancos e valorizados economicamente.
O que se apaga quando se apaga o subúrbio?
Apagar a história do subúrbio é apagar o samba, o futebol de várzea, as tradições de matriz africana, o operariado, os migrantes, os botequins, os terreiros, as igrejas de esquina, os carnavais de rua, as casas de cultura popular. É apagar a força criadora do povo carioca.
Apagar o subúrbio é apagar o Rio de Janeiro
Nada mais verdadeiro. Sem o subúrbio, a cidade perde seu corpo, sua alma, seu coração e seu sotaque. Fica só a moldura, só a capa de revista.
É hora de mudar a política de memória
Fiquei impressionado com a clareza com que os dados revelam a injustiça que é cometida contra os territórios suburbanos. É preciso pensar políticas públicas que valorizem a memória periférica, com editais específicos, ações de preservação participativa, escuta comunitária, proteção de bens culturais imateriais e ampliação dos critérios de tombamento.
Porque o que não se protege, se apaga.
E o que se apaga, se esquece.
E o que se esquece, deixa de existir.
O subúrbio é abandonado pela prefeitura do Rio. Marechal Hermes não vê obras desde a época do Cesar Maia. Os bairros com asfalto ruim. Calçadas quebradas. Muitos quebra molas… Por isso as viaturas da PM não aguentam. É um descaso. Em SP vc vê evolução em todas as direções. No Rio fica numa bolha. A Cidade não evolui. Olha o centro do Rio como está abandonado. Vazio. Temos o pior prefeito do Rio. E tem quem aplauda.
Sim, Fernanda, releia meu artigo e veja que eu critico exatamente esse descaso com o subúrbio. Não defendi bolha alguma. Releia o artigo. Um abraço. Antônio Sá
Zona Sul e Centro são lugares de produção e para se viver. Zona norte e zona oeste são áreas dormitórios. As pessoas só vão pra casa pra dormir depois do trabalho.
Pois é. Zona Sul e Centro são o coração turístico e cultural da Cidade.
Temos cultura nos subúrbios também, Anne. Um abraço. Antônio Sá
Temos cultura e história nos subúrbios também, Anne. Inclusive, muito da cultura carioca se originou nos subúrbios. Um abraço. Antônio Sá
O subúrbio tem história, Maria. Muito da cultura carioca se originou nos subúrbios. Um abraço. Antônio Sá
Vc vive numa bolha, né? Não conhece o resto da cidade.
Prezada Fernanda, os dados que apontei são oficiais. Não entendi seu comentário. Como vivo numa bolha, se falo do descaso com a história e a cultura viva dos subúrbios ? Eu vejo a cidade como um todo. Mas tudo bem. Respeito sua opinião. Um abraço. Antônio Sá